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Que Portugal Arda

 

Manuela Raposo Magalhães *

 

O debate que tem vindo a público sobre os incêndios florestais não incide nas questões estruturantes. Bombeiros, meios aéreos, incendiários, são todos problemas a jusante da questão principal. O conceito de dinâmica da vegetação é indispensável à compreensão do que aqui se defende e pena é que os fitossociólogos, não participem publicamente neste debate.

A vegetação existe, não isoladamente, mas sim em comunidades constituídas pelos estratos herbáceo, arbustivo e arbóreo (etapas de evolução). Estas comunidades vivem associadas a determinadas condições ecológicas e em estado de equilíbrio dinâmico (evolutivo ou regressivo), até atingirem o estado de equilíbrio climácico, a última etapa, situação designada por bosque climácico, se este não tiver sido intervencionado pelo Homem. Os bosques climácicos, em Portugal, seriam constituídos por Carvalhos, nos quais se incluem o Sobreiro e a Azinheira.

A intervenção pelo Homem nestes bosques climácicos destinou-se tradicionalmente a cultivá-los com a preocupação de manter a sua perenidade (sustentabilidade), o que deu origem à mata, ou a interromper a dinâmica de regeneração natural de determinadas etapas que tendem, sempre que as condições ecológicas o permitem, para o bosque climácico. Se quis prados, impediu a sua evolução para a etapa arbustiva, se quis matos, impediu a sua evolução para a etapa arbórea. Este controle foi tradicionamente feito pela pastagem, pelo fogo e pelo corte para outros usos, como os materiais, a lenha e as camas dos gados (fonte orgânica de conservação do fundo de fertilidade do solo).

A Revolução Liberal ao defender os direitos do indivíduo, nomeadamente através da propriedade individual, ignorou as formas comunitárias de utilização do território (os baldios) que giravam em torno da pastagem, constituída sobretudo por matos, controlados através do fogo e do pastoreio e dos quais dependia grande parte da economia das populações rurais. Este período deu origem a uma sub-valorização dos matos, no ordenamento da Paisagem que tiveram que ser substituídos por outros usos.

A perspectiva neo-positivista do modernismo, que entre nós foi desenvolvida durante o Estado Novo, empolou de modo quase exclusivo o papel económico da mata. A protecção do solo e da água, o suporte à biodiversidade, o papel da compartimentação da agricultura pela sebe, que não é mais do que uma forma transformada da mata, reduzida às suas funções essenciais da protecção ecológica de um meio muito artificializado como é o da agricultura, foram esquecidos. A complementaridade dos agrossistemas tradicionais, em que a sustentabilidade resultava de um sistema complexo de fluxos de energia e nutrientes, entre a mata nas suas diversas formas (incluindo a sebe e os matos), a agricultura e alguns sistemas particularmente votados à conservação ecológica, como os cursos de água, deixaram de ser ensinados na Universidade.

Assistiu-se à discussão caricata que ainda hoje perdura, se o País, por ter solos pobres, era agrícola ou florestal. Como se fosse viável a mata sem agricultura e a agricultura sem mata. Entre as campanhas do Estado Novo, a “pinheirização” do País incidiu sobretudo nos baldios do Norte e Centro do País que constituiam grande parte das economias de montanha. O conflito entre os Eng. Silvicultores, nessa época agentes da política estatal, e as populações rurais que punham fogo aos pinhais para preservar a sua base de subsistência, são retratados por Aquilino Ribeiro e Fernando Namora. A entrada das celuloses no País (anos 60) deu origem à plantação de eucalipto em áreas brutais. A mata deu lugar à floresta monoespecífica, ignorando as potencialidades da regeneração natural, a potencialidade dos solos e respectivas circunstâncias ecológicas para essa produção, as exigências das zonas mais sensíveis para a conservação do solo e da água, seguindo o modelo modernista de tudo destruir para tudo plantar de novo. O objectivo exclusivo era a produção. A floresta substituiu a mata. O sul do País onde domina o sobreiro e a azinheira, tradicionalmente cultivados sob a forma de Montado (adaptação à pastagem) foram agredidos sobretudo pela Campanha do Trigo, mais uma vez com a preocupação de produzir aquilo para que não temos potencialidade ecológica. A desertificação da Serra Algarvia é um retrato disto mesmo: a ignorância da aptidão ecológica do território e da espacialização dos ciclos ecológicos (se querem ter água no litoral algarvio terá que haver mata na Serra). Ao longo de todo este tempo, a preocupação foi sempre a de reduzir o período de crescimento das espécies disponíveis (autóctones) à custa de exóticas. O carvalho e o castanheiro foram substituídos pelo pinheiro (40-50 anos) e pelo eucalipto (9 anos).

A PAC veio agravar este cenário com o abandono rural que fomentou. A mata, agora fundamentalmente constituída por pinheiro e eucalipto, foi progressivamente ocupando o lugar de algumas descontinuidades no grau de combustibilidade que, antes, ainda eram asseguradas pelas hortas e pomares, nos vales, pelo olival e pela vinha, nas vertentes. Todas estas circunstâncias, conjuntamente, conduziram à situação que hoje se vive. Aquilo que é combustível, arde, com um ciclo que é o necessário ao restabelecimento das condições de combustibilidade. Por isto não estou inteiramente de acordo com Paulo Varela Gomes (Público, 05/08/11) que se refere aos incêndios florestais como um problema de Regime, o que coloca a questão, nos últimos 30 anos. Esta é, antes de mais, uma questão conceptual, de paradigma. Se não houver uma intervenção planeada e instrumentada para inverter a situação, aquilo que vamos ter é mais do mesmo, porque o pinheiro, ecologicamente muito plástico, regenera mais facilmente do que as espécies autóctones. Por isso digo: que Portugal arda. Porque é ecologica e humanamente impossível manter a situação tal como ela existe.

É imperativo mudar de paradigma e repensar as políticas de desenvolvimento rural integradamente, nas quais a mata tem que assegurar primeiramente as funções de conservação do solo e da água (alguém ouviu falar nesta função a propósito do Plano Hidrológico?); em que aquilo que se produz tem que depender da aptidão ecológica da Paisagem e não da capacidade industrial instalada; em que as diversas funções da ruralidade contemporânea (conservação, produção, lazer e turismo) têm que ser conjuntamente viabilizadas, utilizando o conhecimento de base ecológica que já existe na nossa Universidade, embora longe de assumir a tendência de opinião dominante.

Substituir maciçamente o pinheiro e o eucalipto pelas espécies autóctones (sobreiro e a azinheira, no Sul e alvarinho e negral, no Norte), reservando quotas, por propriedade, para o eucalipto, como mal necessário mas rigidamente controlado, para equilibrar financeiramente as explorações; incrementar o castanheiro, reabilitar o freixo nas terras baixas; apoiar o olival e a vinha e os vários tipos de pastagem. Tudo isto articulado em Planos de Ordenamento do Território, não sectoriais: que implementem a Estrutura Ecológica aos vários níveis territoriais, tal como está na lei, reunindo todas as áreas essenciais à sustentabilidade ecológica; que ponham no seu lugar os aglomerados urbanos e rurais, clarificando a impossibilidade de se construir no seu bocado de terra, agora que a agricultura perdeu o seu peso. A implementação de um novo modelo de Ordenamento do Território exige a utilização de novas técnicas recomendadas pelo conhecimento do funcionamento ecológico da Paisagem, como a regeneração natural da vegetação, mas também de acções de campanha “à Estado Novo” com intervenções maciças de plantação.

Medidas estruturantes seriam: acabar a Carta de Solos do País; actualizar o cadastro, para que se conheçam os proprietários e com eles se possa instituir um novo modelo organizacional; iniciar um grande debate nacional que não fique confinado aos “especialistas”, para que se possa chegar a um novo conceito de Ordenamento da Paisagem.

Medidas de emergência: com sede nas CCDR (porque esta matéria é do domínio do Ordenamento do Território), promover Planos de Desenvolvimento das Áreas Ardidas, com um conjunto de princípios reguladores previamente aprovados que integrem as capacidades de iniciativa dos proprietários e que se substituam aos que a não têm; a tradução destes planos em acções bem definidas, com estimativas de implementação que sejam prioritariamente financiadas pelos programas existentes; encaminhamento de verbas para esses mesmos programas.

 

* Doutorada em Arquitectura Paisagista. Regente das disciplinas de Ordenamento do Território do ISA-UTL e da disciplina de Planeamento Biofísico do IST-UTL.

 

Agosto 2005

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